segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

"Toda a terra vibra nela, todo o universo se explica numa palavra final. A mais alta, a mais profunda. Mas não sou eu que a faço vibrar, é ela só que a si mesma se diz. Música áspera a minha, na dificuldade dos dedos, da arcada certa e nítida, outra música para lá dela se subtiliza ao meu ouvido até ao silêncio final onde se perde a aspereza da minha execução. Que palavra se diz neste dizer? não a sei. Sei apenas que esse silêncio se preenche de tudo o que não sei dizer nem sobretudo me apetece dizer. Como uma rede de sustivesse todas as impurezas, o fio da água passa e a sua pureza me comove e só ela me existe. Fecho a caixa do violino, fecho a janela. Desço de novo à sala, olho ainda a tarde que se apaga. E é como se eu próprio me evolasse com essa tarde e de mim ficasse o que útil e necessário me sustentasse o viver. Tudo tão pouco - que é que resta sempre de uma vida humana? Mesmo a dos heróis, dos grandes heróis da arte e do saber. Depositaram a grandeza que foi sua, o que lhes fica e o nada que os sustenta, a miséria de um corpo que se extingue. Toda a convulsão de uma vida, aguentada agora com uma breve ideia, um frágil apoio, o vazio de si. A vida realiza-se multiplicadamente com a realização de quem a realiza. Com esse nada ou esse tudo se colabora na sua diversificação. Estou só - estás só. Não penses. Não fales. És em ti apenas o máximo de ti. Qualquer coisa mais alta do que tu te assumiu e rejeitou como a árvore que se poda para crescer. Que te dá pensares-te o ramo que se suprimiu? A árvore existe e continua para fora da tua acidentalidade suprimida. O que te distingue e oprime é o pensamento que a pedra não tem para se executar como pedra. E as estrelas, e os animais. Funda aí a tua grandeza se quiseres, mas que reconheças e aceites a grandeza que te excede. Há uma palavra qualquer que deve poder dizer isso, não a sabes - e porque queres sabê-la? É a palavra que conhece o mistério e que o mistério conhece - não é tua. De ti é apenas o silêncio sem mais o eco de uma música em que ele se reabsorva. Pensa-o ardentemente, profundamente, absolutamente. " Vergílio Ferreira - para sempre

1 comentário:

marta disse...

Depois de ler "Para Sempre" e de descobrir que o corpo de Vergílio estava sepultado num canto do cemitério dessa aldeia que sempre foi a sua, virado de frente para a Serra, tal como pedira, não resisti a procurá-lo. Encontrei a casa. E encontrei-o. Era Verão e o chão queimava, sentei-me na beira da campa rasa como na beira de uma cama acabada de fazer. Senti-lhe a presença de brasa incandescente sob as cinzas e pedi-lhe que me pusesse a mão sobre o ombro (tantas vezes me apeteceu essa mão sobre o ombro quando me perdia nos teus livros). Conta-me, Vergílio, diz-me o que vês. Permaneceu em silêncio, e no silêncio ouvi-o: olha, a enorme massa da montanha sob o céu carbonizado... Eu vi. Fechei os olhos. Já sei onde te procurar. A vontade de ficar aqui, para sempre.