terça-feira, 25 de março de 2008

“Quando está assim, desiludido com o mundo, a primeira coisa que e lembra é passar pela vizinha galinheira. Sabe que a vai encontrar a fazer malha e a balançar no cadeirão matriarcal à sombra de galinhas e de patos degolados. Malha para as crianças desvalidas, é o passatempo da mulher. Sobrevoada por cadáveres depenados, produz gorros, casaquinhos e abafos de berço numa lã angorá tão mimosa que faz lembrar a penugem dos pintainhos, um dois três lança, um dois três mate, então por cá, vizinho? O Corvo salta o degrau, e ela, sem parar de balouçar, estende o comprido gancho com que desprende os galináceos lá no tecto e enfia-o no balde dos desperdícios. Tira de lá o seu pedacinho de enxúndia, a sua sobra de tripas, a sua crista de galo, que são primores que o Corvo Taberneiro muito aprecia. Enquanto ele come, a lastimosa suspira e conta trivialidades – «Ai», diz ela. O ai da galinheira serve para tudo: se lhe sai do coração, é um lamento, mas também pode ser rejeição enojada, quando dito com um voltar de cabeça, ou vislumbre de espanto divertido, se os bigodes indicarem que sorri. «Ai, menino», diz ela às vezes para o Corvo em momentos de maior intimidade. Apesar de lastimosa, dá realmente gosto ouvi-la conversar com muitas malhas pelo meio porque é senhora dum coração universal que abrange todas as criancinhas desamparadas e todos os animais da natureza com excepção das aves de capoeira que, palavras dela, não reconhecem quem as trata nem nunca deram lucro ao comércio. A esses bichos junta o porco que também não é da sua devoção mas por outras razões. Na realidade, o porco, o suíno, como ela prefere chamar-lhe, um dois três lança, um dois três mate, ai, o suíno é um animal campesino que não olha a luz do sol. Não tem ideologia, o suíno. Tem o chamado olho porcino e se ainda guarda algum respeito por Deus é porque nunca o encontrou.”
José Cardoso Pires in ' A República dos Corvos'

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