“ Não pretendo realizar uma ambição incógnita mas apenas exprimir textualmente o que tenho prendido nos confins da mente. Aliás, creio que isto não é mais do que uma insolência para comigo e por isso, se a compreensão for inexistente e te estimular à crítica, pondera o egoísmo patente nesta carta e resigna-te.
Escrevo do anonimato porque me é mais fácil. Deixo desde já claro que nenhum mal te desejo e está ainda mais translúcida a minha recusa em provocar-mo. Sempre que se cria um filtro entre nós e o mundo físico, todas as insuportabilidades se transformam e é mais pacífico o discurso que se dispõe a fazer. Inexiste o julgamento alheio, coisa cruel, e reina uma artificial serenidade que apesar de aparente é satisfatória e serve a ocasião.
Queria muito ter coerência neste discurso embora tal se tenha demonstrado uma tarefa insuficiente a muitos níveis. Compreendo cada vez mais a dificuldade em demonstrar a sensação quando é pressentido, ao mesmo tempo, a expressão tacanha e diminuta que a palavra transmite quando verbalizada, comparativamente
Há estados que não são passíveis de formatar ou exigir-lhes justificação. Circunstancias que nos caem ao colo, que perduram, que nunca ambicionámos e que ainda assim, detêm um odor tão familiar que equacionamos a hipótese de terem estado sempre presentes nalguma parte do nosso inconsciente, adormecidas. Condições indomáveis, feitas de toxinas, que nos tomam de assalto e estilhaçam a lógica.
Idealizei-te durante uma parcela de tempo que não sei quantificar com precisão, e nutro hoje uma certa vergonha por isso. O que te queria dizer naquela altura não cabe nesta folha. Foste um colosso entre o meu raciocínio e a minha razão, senti-te o motivo de todos os meus passos no passado. Vivi uma atracção indomável, reacções químicas muito superiores à minha decisão, coisa que ainda agora acontece mas com um pouco mais de conformação – sei que não me pertencem, sinto que o teu percurso é outro.
Há muito que o sonho já desertou - em mim, sei que sempre o vivi. Tive sensações que se firmaram cansaço, que ocuparam toda a extensão do espírito e agora que as penso outra vez, o desejo é exactamente o mesmo mas a ambição é impossível. És tu quem o meu pensar vai transportando. Crescer por dentro, cá a trás, foi a conclusão desta real experiencia. Faltei-me em tantos momentos que olhando para tudo o que julgo termos passado, pressinto um desconhecido. Acreditar em nós foi um conforto, uma derrota que desafiou. Não vou escrever-te o quanto me arrependo, não afirmo que perdi a cadencia nem o compasso. Apenas tenho agora uma estranha sensação, meia torta e meia direita, que, de qualquer das maneiras, as coisas vão dar certas a um mesmo ponto. Desejo muito que te seja possibilitada a oportunidade de sentires o mesmo porque ainda que parte de uma ilusão é um milagre instantâneo, onde a pergunta se dissolve muito antes de qualquer resposta. Exprimo um decidido adeus por nunca teres sido quem eu gosto de pensar que és e vou limitar a minha saída à mesma forma da entrada: sem nunca ter aberto a porta e sem te entregar qualquer chave. "
Frank Green, in 'Diaporese'
1 comentário:
Só na loucura: "resigno-me, não me resignando..."
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